quarta-feira, 20 de outubro de 2010

Perdem Alguns; Ganha a Nação!, por Ernesto Oderich Sobrinho

Estamos em vias de ver aprovada uma Reforma do Código do Processo Penal que instituirá regras ainda piores que as ora existentes. Inconformados com a situação, voluntários da BSG trabalham para propor uma alternativa, enquanto o convidamos a pensar no assunto como cidadão – isto é, um leigo diretamente interessado. Todo o brasileiro sabe que não importa quão perverso tenha sido o crime cometido, quem tem recursos contrata bons advogados e, geralmente, consegue evitar a condenação! Isso desmoraliza a ética no país.

Os privilégios nascem das imprecisões do próprio texto da lei. Não há como não perceber que a anarquia legal que nos cerca é cuidadosamente organizada, e não apenas o fruto acidental de eventuais excessos interpretativos de juízes, incompetência de promotores, ou esperteza de advogados de defesa. O Brasil é assim porque quer, e é isso mesmo que quer ser!

Qual Brasil? Certamente não o de seus dois terços menos favorecidos! Esse é o Brasil desejado pelos donos do poder, apoiados por um “povão” que é mero coadjuvante no processo eleitoral!

Percebe-se uma clara diferença na eficácia das leis que dizem respeito à proteção do patrimônio e transações econômicas, e as relativas à proteção das pessoas. As primeiras são razoavelmente eficazes, pois os abastados cuidam que assim seja quando de sua aprovação!

Já as de proteção às pessoas são de interesse da “plebe ignara”, pois é a que mais corre o risco de virar vítima. E qual seria a razão para uma Legislação Penal tão ineficaz? Talvez o fato de ser bem mais provável que um “poderoso” seja réu do que vítima em um processo penal! Portanto, para os “poderosos” seria melhor montarem sistemas particulares de proteção com carros blindados, vigilância armada, alarmes, condomínios fechados, grades etc., do que prestigiarem a montagem de um sistema público de proteção. Este, para ser eficaz, teria de ser justo e democrático, acabando com privilégios!

Quer evidências? Foram os partidos mais conservadores que evitaram que corrupção fosse enquadrada como crime hediondo, apesar de os desvios de recursos públicos matarem muito mais gente que qualquer quadrilha! Igualmente, foi também um conservador que alterou o tempo verbal que ameaça anular a eficácia da Lei da Ficha Limpa, recentemente aprovada.

A facilidade em distorcer a vontade popular é consequência direta de nossa versão “bovariana” de democracia – a realidade é o oposto do que pretendemos que seja! Como a vontade popular não fica refletida na formação da Câmara Federal nem do Senado, o poder político do “povão” fica reduzido e deformado. Isso impede que aconteça aqui o que lembra o Professor Hilário Franco: as “classes dominantes” europeias só concordaram em desenvolver sistemas jurídicos, policiais e prisionais democráticos e eficazes no início do século XIX, quando o processo democrático fez crescer de tal forma o poder político das “classes perigosas” que tornou inviável o uso do poder pessoal para burlar a lei.

O prejuízo das classes dominantes europeias resultou em ganhos para toda a sociedade! E a história mostra outros casos de alterações de lei de grande proveito social propostas por representantes das classes sociais mais prejudicadas pelas mesmas. Vamos a alguns exemplos:

A Restauração Meiji, empreendida pelas quatro famílias da mais alta nobreza japonesa em 1868: convencidas de que a modernização do Japão deveria passar pelo aumento do poder do Imperador e pela eliminação do feudalismo, entregaram-lhe suas terras para que as redistribuísse, reorganizando a sociedade e o país, em comovente demonstração de patriotismo. Perdeu a nobreza; ganhou a nação!
Carlos Pellegrini foi o mais genuíno representante das oligarquias antidemocráticas até se dar conta do quanto isso prejudicava o desenvolvimento da Argentina. Em 1906, dá início a uma campanha pela alteração da lei eleitoral que, por meio da corrupção, violência e fraude, assegurava o poder dos conservadores. Consegue a aprovação da chamada “Lei Sáens Peña” em 1912, a qual institui o voto secreto e obrigatório. Isso possibilita a eleição do opositor Hipólito Irigoyen em 1916, e assegura as condições para o progresso do país pelo menos até o início do ciclo ditatorial. Perderam os oligarcas; ganhou a nação!
Theodore “Teddy” Roosevelt Jr., filho de tradicional família de Nova Iorque, estadista, historiador, naturalista, explorador, escritor, soldado e herói da Guerra Hispano-Americana, é eleito vice do Presidente William McKinley. Assume a Presidência quando McKinley é assassinado em 1901. Apesar de Republicano, reforça as Leis Antitrustes e faz aprovar a 16.ª Emenda à Constituição, permitindo ao Governo Federal cobrar Imposto de Renda de pessoas físicas. Ganhou a economia; todos ganharam com o progresso!
François Eugene Vidocq, nascido na França em 1775, alistou-se, desertou e passou a agir como ladrão. Durante 14 anos roubou, foi detido, condenado, encarcerado, fugindo imediatamente um número incontável de vezes, desafiando muros, sentinelas e carcereiros. Tornou-se um ídolo popular! Em 1809, preso em Lyon, pediu para ser levado ao Chefe de Polícia, propondo-lhe que o contratasse como policial caso voltasse imediatamente depois de, mais uma vez, fugir no trajeto entre a Chefatura e a Cadeia. Fugiu em 15 minutos e voltou em menos de duas horas. Foi incorporado. Criou métodos de investigação e captura que revolucionaram a organização policial francesa, dando origem à famosa SURETE, admirada e copiada em todo o mundo. Deixou-a em 1832 para fundar a primeira Agência Privada de Detetives da França. Perderam os ladrões; ganhou a sociedade francesa!

A ética é o valor subjacente em todos os casos acima. Talvez mais que qualquer outra coisa, desde longa data, esse é o grande problema do país. Vale lembrar que, em 1808, D. João VI abria os portos brasileiros para o comércio internacional, beneficiando comerciantes portugueses, brasileiros e ingleses, e, já em 1810, o Embaixador da Inglaterra encaminhava ao Imperador, formalmente, a queixa inglesa sobre a absoluta falta de honestidade dos comerciantes locais!

Na edição da Zero Hora de 24 de julho de 2010, o jornalista esportivo Wianey Carlet publicou a crônica “Ética banida” relembrando várias demonstrações de falta de ética de parte de atletas e dirigentes de grandes clubes de futebol, concluindo: “São incontáveis os exemplos do futebol em que a falta de ética foi santificada. [...] Cabe perguntar: se, no esporte mais popular do Brasil, escarnecer da ética tornou-se padrão de comportamento, onde estará a autoridade para cobrar ética na política, por exemplo? Se achamos que a ética no esporte não é necessária, que o importante é vencer e o resto é pura bobagem, por que seria diferente na vida?”.

Aí a importância da Reforma do Código de Processo Penal: acabar com todas as formas de impunidade seria fundamental! Precisamos de uma reforma conforme solicitava o requerimento n.º 227/2008 do Senador Renato Casagrande (PT, ES): uma que atenda às “exigências de celeridade e eficácia […] (produzindo decisões) em prazo razoável [...] (e colocando) em relevo a necessidade de eficácia punitiva penal [...] (e seja) instrumento de celeridade e distribuição de justiça [...]”.